Guiné 1972/1974
No início da manhã do dia 23 de Junho de 1972, o BOEING 707 da força Aérea Portuguesa, que transportava a companhia CCS do BART 6520/72, começava a baixar suavemente sobre o aeroporto de Bissalanca, Bissau. Era a minha primeira viagem de avião. Sentado no meu lugar junto da janela ia observando a imensidão da planície de terra avermelhada, repleta de rios e canais, e ao mesmo tempo tentava perceber todo processo de aterragem. Decorridos alguns minutos, o avião encontrava-se imobilizado na pista. Pouco depois as portas abriram-se e recebemos ordem para sair. Ao descer as escadas do avião, senti no rosto uma golfada de ar quente com denso e perfumado cheiro a terra húmida que sufocava a respiração, senti um aperto no peito, o suor que me molhava a testa começava a descer pela face. Tive o pressentimento que não iria aguentar um clima tão diferente daquele a que estava habituado, não comentei o meu sentimento com nenhum dos meus companheiros, a familiaridade com eles era praticamente inexistente, por isso, entendi que não seria oportuno qualquer comentário. Aguardei sereno o desenrolar dos acontecimentos.
O sol emergia no horizonte, o dia começava a despontar, à minha volta além de algumas aeronaves, havia uma imensa planície de terra cor de fogo. Enquanto esperava sem saber o quê, ia reparando no enorme contraste entre os trajes Europeus com Africanos.
Decorreram aproximadamente duas horas, chegaram os camiões Berliet do exército para nos transportar até ao Quartel dos Adidos, este situava-se a uma escassa meia dúzia de quilómetros do Aeroporto, mais concretamente em Brá, aí se ia formar a coluna militar que transportaria os soldados acabados de chegar até Bolama, para fazer o IAO “Instrução de Aperfeiçoamento operacional”. Eu não tinha tido qualquer convivência com os meus companheiros de viagem. Eles tinham estado no RAL 5 em Penafiel a formar batalhão durante aproximadamente duas semanas e eu fui encaminhado para a Escola Militar de Eletromecânica (EMEL) para aí fazer um estágio. No dia que me foi indicado, lá me apresentei na EMEL, mas apenas lá fiquei uma noite, no dia seguinte mandaram-me ir para casa e aguardar até à véspera do dia de embarque para a Guiné. Por esse motivo não conhecia nenhum dos meus camaradas. E se até aqui não tinha tido nem tempo nem oportunidade de conviver com eles, iria acabar por me afastar completamente de todos estes companheiros, que numa situação normal seriam a minha “família” durante os próximos dois anos.
Em cima dos camiões Berliet, que se deslocavam ao longo da única estrada de alcatrão que se avistava, num estranho ambiente, que tinha tanto de insólito como de misterioso, por entre paisagens nunca antes imaginadas, o meu pensamento redopiava à procura de resposta.
Chegamos aos Adidos pouco antes da hora de almoço do dia 23 de junho de 1972.
Chegado o meio-dia, depois da rotineira formatura, entramos para o refeitório, fiquei por alguns segundos
a olhar vagamente ao meu redor, gerou-se em mim um sentimento de frustração e
revolta, arrepiei com as degradantes condições que me circundavam, sentei-me à
mesa e deslizei os olhos pelo que nelas era colocado para servir de
almoço, sinceramente, não gostei, claro que não estava à espera de um manjar, mas imaginava algo mais razoável. Comi o pão, bebi o vinho e saí para exterior logo que me foi permitido.
Chegaram as quatro horas da tarde, ouvi ao longe alguém que perguntava pelos radiomontadores, era comigo… aproximei-me de quem chamava, era um Furriel, rapidamente se juntaram todos os radiomontadores, éramos quatro, um Furriel, dois Cabos e um Soldado. Só nesse momento fiquei a conhecer esses meus camaradas, até aí não fazia qualquer ideia de quantos éramos com essa especialidade.
Quis a sorte e o destino que eu não seguisse com o Batalhão para o mato. A meio da tarde desse dia 23 de Junho de 1972, apareceu um jipe militar para nos levar até ao AGRTM (Agrupamento de Transmissões), Quartel Militar localizado em Santa Luzia, Bissau, ao lado ficava o Quartel-General e várias outras Unidades Militares.
Nesse momento acreditei que Deus tinha direcionado para mim o seu olhar. Era de facto uma Bênção Divina poder ficar na cidade.
O Agrupamento de Transmissões em Bissau era um quartel novo com um bom aspeto, estas novas instalações tinham sido inauguradas em janeiro de 1972, embora faltasse ainda acabar o refeitório e duas camaratas.
Agrupamento de Transmissões |
O Agrupamento de Transmissões em Bissau era um quartel novo com um bom
aspeto, estas novas instalações tinham sido inauguradas em janeiro de 1972,
embora faltasse ainda acabar o refeitório e duas camaratas.
Quartel Militar localizado em Santa
Luzia, Bissau, ao lado ficava o Quartel-General e várias outras Unidades
Militares.
Nesse momento acreditei que Deus tinha direcionado para mim o seu olhar.
Era de facto uma Bênção Divina poder ficar na cidade.
O Agrupamento de Transmissões em Bissau era um quartel novo com um bom
aspeto, estas novas instalações tinham sido inauguradas em janeiro de 1972,
embora faltasse ainda acabar o refeitório e duas camaratas.
Este Agrupamento, comandado pelo Ten-Coronel Mateus da Silva, era composto
por uma Companhia de Transmissões e outra de Serviços de Material
(CRMMTM), (Companhia de Reabastecimento de Material de Manutenção de
Transmissões), era nesta, que iria ficar integrado.
Cheguei ao por do sol ao local que iria ser a minha nova casa durante os próximos dois anos. O furriel foi de imediato alojado nos quarto destinados à classe de Sargentos, ao soldado e aos cabos, só no dia seguinte lhes seria atribuída uma cama na caserna deste Agrupamento.
Para passar a primeira noite foi-nos entregue uma tenda de campanha e colchões pneumáticos. Não me pareceu que isso fosse um problema. Não havia frio, porque o clima era quente, pensei… o importante era ter onde dormir e descansar. Sentia-me exausto depois das longas horas de viagem desde Penafiel até à estação de comboios de Campanhã, depois até ao aeroporto da Portela e deste até à Guiné.
Com o desaparecer do sol e a chegada da noite, era hora de ir para a cama, tirei a incomoda farda, descalcei as botas e no silêncio da madrugada adormeci num sono profundo e tranquilo. Acordei com o nascer do dia, que na Guiné acontece por volta das seis horas e trinta minutos, tinha o corpo húmido e peganhoso, próprio daquele clima tropical. Levantei-me a pensar descobrir um local onde tomar um banho, e… nesse momento, deparo-me com uma insólita situação. O meu esbranquiçado corpo, que raramente tinha apanhado sol, estava repleto de grandes inchaços vermelhos. Fiquei perplexo, sem compreender o sucedido, mas… não era o único, os meus camaradas também se encontravam com sintomas idênticos. Os mosquitos, que existem em abundância neste território, tinham passado a noite a saborear o sangue novo que acabara de chegar.
Para dormir nas tendas teria de se usar um mosquiteiro, (rede fina) para impedir a entrada dos mosquitos para dentro desta. O desconhecimento desta regra facilitou a vida a esses irritantes insetos.
Cama com mosquiteiro
Bancada onde fiquei a trabalhar |
parte da bancada Storno |
Connosco estava outra equipa em fim de
comissão, que em breve nos deixaria para regressar à Metrópole e que ficaríamos
a substituir.
Estamos em junho de 1972, era a época das chuvas, estas apareciam repentinamente e com muita intensidade, muitas vezes acompanhadas de fortes trovoadas, duravam alguns minutos e voltava o sol.
Quando me deslocava para este centro emissor, podia observar ao longo do caminho a beleza da paisagem, realçada pela grande quantidade de bagas-bagas
Eram verdadeiras obras de arte, estes ninhos edificados pelas formigas, que mais pareciam autênticos monumentos, solidificados com a vermelha e barrenta terra do solo da Guiné.
Os Periquitos
Na tropa é costume dizer (A velhice é um posto). Não um posto em termos hierárquicos, mas a nível de estatuto pessoal.
Na Guiné, os mais velhos apelidavam de (periquitos) os recém-chegados
(novos).
Nunca consegui perceber concretamente o porquê deste nome, com o passar do
tempo fui interpretando que se tratava de uma espécie de praxe. Nos primeiros
tempos, ao passar pelos camaradas mais antigos, não me livrava de ouvir uns
(puis-puis, que queriam dizer, aqui vai mais um periquito, os novos eram
facilmente identificado pela cor da pele mais clara em relação aos militares
que se encontravam na Guiné há mais tempo.
Abutre
Na Guiné havia uma grande diversidade de pássaros, todo o tipo plumagem, de
cores e tamanhos. Mas um destacava-se de todos os outros. “O abutre” trata-se
de uma ave de rapina, voraz, de cabeça e pescoço depenado, pesada e grandes
asas. Tinha para mim um pesado simbolismo de morte.
Alimenta-se de animais mortos, o que num ambiente de guerra como se vivia
na Guiné, era extremamente útil, fazia a limpeza dos corpos que atingidos pelas
balas, ficavam abandonados na mata.
Rotina diária
Depois da noite, entre o sono e o zumbida da ventoinha, que me ajudava a amenizar o clima tropical da Guiné, oferecida por um camarada de regressado à metrópole, chegavam as 8h00 da manhã, vestia o calção e a camisa, passava pela casa de banho cortar a barba e ia ao refeitório da companhia tomar o leite com café e o pão com manteiga, de vez em quando alternava com uma passagem pelo bar onde fazia um pequeno-almoço melhorado, normalmente, leite achocolatado ou um sumo com um bolo acompanhar.
Às 8h30 era hora de dar entrada na oficina. Ninguém me impunha ou exigia
nada, não era necessário, assumi sempre o serviço de forma responsável. Os
aparelhos que entravam avariados para reparar era tarefa fácil e conjugamos o
serviço entre os quatro com facilidade.
Ao meio-dia ia almoçar ao refeitório, logo de seguida, passava pelos
balneários tomar um duche e deitava-me a dormir a sesta, às 15h00 voltava para
o serviço e permanecia aí até
18h00. À noite depois de jantar, quando não ia à cidade, ficava no Quartel
e aproveitava para escrever à esposa e ler um ou outro livro que conseguisse
arranjar.
Esplanada em Bissau
Ia muitas vezes à cidade, o centro ficava as cerca de quilómetro e meio, ia e vinha normalmente a pé, os autocarros de transporte público tinham poucos lugares sentados, a maioria dos passageiros iam de pé com o braço levantado para agarrar a pega do cinto, o cheiro de suor característico e comum da raça negra “catinga” era muito incomodativo, por isso preferia não usar esse meio de transporte.
Juntava-me com outros camaradas numa ou outra esplanada. Sempre que a
possibilidade financeira o permitia, divertia-me a beber umas cervejas e a
comer umas ostras, petisco barato que se encontrava em quase todos bares,
Embora o rigor militar na minha Unidade,
passasse praticamente despercebido, não me podia esquecer que era militar e que
coabitava no meio de um grande aglomerado de quarteis. A entrada para o
complexo militar era controlada pela Polícia Militar que podia pedir a identificação e
o documento de autorização de saída "dispensa" passado pelo
comandante de companhia. Mas a assinatura do Comandante era apenas um rabisco
fácil de imitar, por isso desde cedo deixei de dar trabalho a este Homem (Capitão Nair dos
Santos), que era uma pessoa excecional!
Os meus principais amigos eram: O Machado, colega de bancada, Natural de
Pevidém, o Barroso, vizinho do Machado, que trabalhava na secretaria, o
Martins, que viria a ser meu sócio no bar, o Matias das Calda da Rainha, pessoa
simples e humilde era o amigo com que mais me identificava, o Flávio,
companheiro da oficina, o Fraga de Armamar e Valdemar de Rebordosa.
Foi na companhia de todos estes camaradas e muitos outros, que os dias
foram passando, muitos deles de grande diversão, como por exemplo aquele dia em
que nos lembramos de ir apanhar um vitelo na mata e o mandar assar com batatas,
no forno de uma padaria, com muita cerveja a acompanhar.
Patuscada com vitelo assado no forno.
Juntamos uma dúzia de amigos e poucos dias depois, numa sexta-feira, punha
o plano em prática. Quatro amigos mais arrojados, levaram uma viatura Unimog e
foram apanhar o animal. Depois de morto e preparado foi levado para o forno de
uma padaria que havia nas proximidades e aí foi assado com batatas e saboreado
pelo grupo, onde não faltou a cerveja e a alegria e no fim muitas bebedeiras. A
patuscada foi feita num domingo, foi um dia inesquecível.
Cidade de Bissau.
Avenida principal de Bissau
A capital Bissau, situada junto ao mar, onde desagua o maior rio da Guiné, o Geba, era uma cidade agradável, com muitos cafés, esplanadas, restaurantes, comércio de rua ao estilo dos Países Africanos, bonitas avenidas, enfim, equiparada a uma cidade de média dimensão da Metrópole.
Decorreram as primeiras semanas e integração nesta unidade militar, assim
como a adaptação ao ambiente estava feita. Tinha feito um grupo de amigos, já
conhecia todo o funcionamento do Agrupamento assim como a cidade cujo centro
ficava muito próximo.
No início do mês, quando os soldados
recebiam o vencimento (pré), as esplanadas e restaurantes ficavam lotados. O
valor do pré era 1200$00 (pesos) para os soldados e 1500$00 para os
cabos. Dos 1500$00 que o Exército me pagava, 800$00 eram levantados pela minha
esposa na Metrópole e eu ficava com 700$00, que corretamente geridos davam para
pagar à lavadeira e ir todos os fins de semana jantar à cidade e de vez em
quando ao cinema.
Carta de condução.
Como dispunha de muito tempo livre, inscrevi-me numa escola de condução
para tirar a carta. Não sabia qual ia ser o meu futuro na vida civil, não
queria continuar a minha profissão de marceneiro, a carta de condução poderia
vir a ser uma ferramenta útil, por isso optei pela carta-profissional.
Sobrava-me ainda tempo para ler alguns livros e fazer planos para o meu
futuro profissional.
Desde os onze anos que trabalhava na oficina de móveis do meu pai, mas após
o meu casamento existiram alguns atritos com ele, por isso e também porque
nunca gostei do trabalho que fazia, quase diariamente a minha mente se ocupava
fazendo alguns planos para vida futura, tendo sempre como pano de fundo a
eletrónica.
Praça do Império-Bissau
O Pilão era uma das zonas de Bissau que muito se falava, tratava-se de um bairro sujo e pobre, com muitos bares e prostituição, era uma zona perigosa e pouco aconselhável, os desacatos eram frequentes, frequentar este local era uma aventura perigosa, só em grupo e se possível armados.
No início do mês, quando os soldados recebiam o vencimento (pré), as
esplanadas e restaurantes ficavam lotados. O valor do pré era 1200$00 (pesos) para
os soldados e 1500$00 para os cabos. Dos 1500$00 que o Exercito me pagava,
800$00 eram levantados pela minha esposa na Metrópole e eu ficava com 700$00,
que corretamente geridos davam para pagar à lavadeira e ir todos os fins de
semana jantar à cidade e de vez em quando ao cinema.
Desde os onze anos que trabalhava na oficina de móveis do meu pai, mas após
o meu casamento existiram alguns atritos com ele, por isso e também porque
nunca gostei do trabalho que fazia, quase diariamente a minha mente se ocupava
fazendo alguns planos para vida futura, tendo sempre como pano de fundo a
eletrónica.
Na minha agenda ia anotando os acontecimentos mais relevantes e no
calendário ia riscando cada dia que passava, era um prazer enorme por mais uma
cruzinha no final de cada dia.
Ansiava ir à Metrópole de férias, mas isso só me seria concedido depois de
um ano passado na Guiné. Comecei a pensar como conseguir o dinheiro para a
viagem, o que recebi do pré mal chegava para as despesas do dia-a-dia, com
algum sacrifício fui pondo de lado algumas economias. Era o inconveniente de
estar na cidade, não vivia o terror da guerra, mas havia muito mais onde
gastar.
Os meus dias eram serenos e vividos sem grande receio da guerra, a Guiné
era um território pequeno, à noite eram poucos os dias em que não se ouvia os
bombardeamentos ao longe. Mas não me passava pela cabeça que pudesse haver um
ataque a Bissau, os principais acessos eram controlados e eram muitos os
efetivos militares nesta zona. Os meus camaradas que estavam no mato (zona de
guerra) chamavam a isto - guerra do ar condicionado.
1º Natal na Guiné
Natal 1972. Difícil passar esta data. Faltava a árvore de Natal, as luzes, as fitas coloridas e convívio familiar. É nestes momentos que mais se sente a angústia e a saudade das pessoas que mais gostamos.
Junto de alguns amigos
encontrei uma forma milagrosa de ultrapassar este pesadelo. Whisky e Gin
resolveu o problema. Foi a única bebedeira que apanhei durante a minha vida
militar. No dia seguinte ainda sentia o efeito; Indisposição e dores de cabeça
durante todo o dia.
Fora de Bissau tudo era guerra
Fiat G-91
Fora de Bissau todas as zonas eram perigosas, os soldados passavam horas nos abrigos durante os bombardeamentos. Os nossos aviões de guerra, (Fiat G-91) e os helicópteros eram um apoio rápido e eficaz. Quando uma unidade nossa em zona guerra estava a ser bombardeada, bastava usar os nossos eficientes sistemas de comunicação, (rádio emissor Storno ou outro) e em escassos minutos estavam os nossos Fiat G-91 a largar bombas em cima do inimigo. Sem estes seria impossível a muitos dos nossos quarteis o mínimo de segurança.
Morte de Amílcar Cabral.
Janeiro de 1973, o chefe da organização armada que lutava pela independência da Guiné, (PAIGC) Amílcar Cabral é assassinado em Conacri. De imediato se pensou que fosse obra da nossa polícia-política (DGS), mas mais tarde veio a saber-se que os autores do assassinato foram elementos de seu próprio partido. Após a morte de Amílcar Cabral a luta armada, ao contrário do que se esperava, intensifica-se e a independência de Guiné-Bissau é proclamada unilateralmente em 24 de setembro de 1973 e reconhecida internacionalmente por 80 países. Seu irmão, Luís de Almeida Cabral, é nomeado o primeiro presidente do país.
Um avião da nossa Força Aérea – foi
abatido.
Missel portátil Stella SA-7
Março de 1973, grandes problemas com as nossas forças
Militares. O pior que se podia esperar aconteceu. A nossa supremacia aérea
estava comprometida, o (inimigo) PAIGC possuía agora uma nova e sofisticada
arma, os misseis terra-ar SA-7 Strella de fabrico
Soviético.
A nossa Força aérea possuía os temíveis aviões bombardeiros Fiat.
25 de março de 1973 um dos nossos aviões de guerra foi
abatido. Alguns dias passaram e era abatido mais um Fiat. As
coisas começavam a complicar-se, sem o apoio aéreo o nosso Exército começava a
perder o controlo da situação.
Pouco tempo depois o (inimigo) toma conta de Guilege, onde
tínhamos um Aquartelamento Militar, obrigando as nossas tropas a fugir. Esta
ofensiva é desencadeada pelo PAIGC mas planeada por instrutores Soviéticos e
Cubanos. A guerra estava (perdida).
Era hora de procurar novas soluções para a guerra na Guiné
Era hora de haver uma reflexão política, o Governador da Guiné, General
António Spínola não teve dúvidas, com esse intuito deslocou-se a Lisboa para
junto do poder central encontrar uma solução que pudesse mudar o rumo dos
últimos acontecimentos na Guiné. Em termos racionais passaria por um reforço
militar quer em termos humanos quer em equipamentos, ou mais sensatamente uma
negociação política. O nosso Governo não tinha mais meios humanos para reforçar
esta Província. Já tinham passado pala Guiné mais de 200 mil militares.
Praticamente toda a juventude masculina desta época de conflito passou pela
guerra. Só restava a solução política. Mas mais uma vez esta não foi encarada
pelo nosso chefe do Governo Marcelo Caetano. Novamente a arrogância e teimosia
dos Governantes prevaleceu. Como resposta substituiu o Governador da Guiné,
António Spínola e nomeou para esse cargo o General Bettencourt Rodrigues, a
quem deu ordens para que se lutasse até ao último homem. Para quem tinha o
poder, contava mais o orgulho que as pessoas. Começa aqui o embrião do
movimento de capitães que culminaria na Revolução de 25 de abril de 1974.
Junto dos Oficiais – pairava algum nervosismo
Comecei a sentir que à volta da minha unidade militar havia alguma
agitação. Sentia-se algo de estranho, pairava no ar um nervoso miudinho e muita
insegurança. Notava-se que entre os oficiais havia algum nervosismo. As nossas
forças militares, deixaram de contar com o seu anjo-da-guarda, a Força Aérea já
não nos podia socorrer em caso de emergência. A aviação perdera parte
importante da utilidade. As nossas tropas na Guiné estavam à beira do
precipício. Os oficiais que tinham acesso a informações de caracter
confidencial estavam apreensivos quanto ao futuro. Procurei alhear-me da
situação, afinal era um simples Cabo, o que me preocupava era que chegasse com
rapidez o fim do dia para poder por mais uma cruz no meu calendário.
Férias.
Junho de 1973.
Chegava o tão desejado mês, tinha quase um ano de Guiné,
já tinha autorização para ir 30 dias de férias, dar sangue dava direito a mais
10 dias, como é lógico não desperdicei esta oportunidade.
A seis de junho, de manhã cedo, lá estava eu no aeroporto de Bissalanca
para apanhar o avião com destino Lisboa, eram grandes as saudades e enorme a
ansiedade.
Até onze de julho estive junto das pessoas que me eram queridas, estes 40
dias passaram-se num ápice. Rapidamente chegou o dia da partida, mas tinham
sido magníficos estes dias passados junto das pessoas que me eram próximas, já
só faltava mais um ano e pelo meio ainda ia haver mais um mês de férias, este
pensamento ajudava-me a superar o pesadelo da partida.
Às 7h30 do dia onze de julho, saí com destino ao aeroporto de Pedras Rubras onde embarquei para Lisboa, destino à Guiné, cheguei a Bissau no dia 12 /07/1973. Retomava o meu ciclo diário, oficina, comer, banho, cidade e dormir.
Quando cheguei de férias tive uma agradável surpresa. As camaratas novas estavam prontas para ser ocupadas. A qualidade de vida melhorou mais um pouco, camas e colchões novos, desinfeção diária com inseticida, deixou de ser necessário mosquiteiros, um grande espaço de balneários, bom ambiente e mais privacidade.
Bar à sociedade.
Com esta mudança surgiu-me a ideia de montar um bar na camarata e com isso
tirar alguma rentabilidade financeira. Em poucos dias pus o plano em
funcionamento. Arranjei um sócio para puder dissolver as despesas iniciais,
mandei o carpinteiro fazer um armário, comprei copos, chávenas, um fogareiro
elétrico, cafeteira e alguns outros utensílios, e rapidamente o bar entrou em
funcionamento. De manhã servia pequenos-almoços, após as refeições café e
digestivos. Esta nova atividade, veio ajudar a ocupação do tempo e permitir uma
contrapartida financeira que em muito se refletiu no meu dia-a-dia.
Esta sociedade só durou um mês, não por desentendimento, o Martins, oriundo
de Mangualde, que foi também um grande amigo, pessoa excecional, de grande
simplicidade e muita maturidade, mas foi notificado para ir para Gadamael, zona
de mato e onde a guerra era muito intensa. Fiz contas com ele e fiquei sozinho.
Mantive o bar em funcionamento até ao fim do ano 1973, com o dinheiro extra que
obtive do rendimento do bar, consegui suportar as despesas da segunda viagem de
férias.
O refeitório continuava
a ser um problema.
O tempo foi passando, a adaptação estava feita, a ideia de não conseguir
resistir aquele clima, já tinha desaparecido, tinha um bom grupo de amigos, era
de facto uma guerra diferente da que se vivia no (mato) interior da
Guiné.
O problema maior era o refeitório, continuava a ir fazer as refeições ao
Quartel vizinho (QG), que não tinha nada a ver com o ambiente do meu
Agrupamento (AGRTM), notava-se uma grande diferença entre estas duas unidades
militares, o meu Agrupamento era composto pelos Radiotelegrafistas e
Radiomontadores, o pessoal do QG parecia ter-se acomodado aquele estilo e
encarava a situação com normalidade. A comida, a qualidade das instalações e
equipamentos era motivo de grande contestação. Sentia-se uma revolta
generalizada, o descontentamento era iminente. Os comentários sobre esta
situação começaram a ser tema constante nas nossas conversas. Era comum ouvir
dos meus camaradas; estou farto disto!
Levantamento de rancho.
Agosto de 1973, mais um dia, mais um almoço no QG. Não tínhamos nada combinado, não era preciso. O pensamento dos cerca de 100 militares do AGRTM era o mesmo, não podíamos tolerar por mais tempo as precárias condições daquele refeitório. Não íamos aceitar por mais tempo ir ali comer. Afinal éramos ou não uma tropa qualificada?
Naquele local fomos sempre vulgarizados, depois de formar, entravam
primeiro os militares do QG, que eram bastantes mais do que nós e só depois é
que chegava a nossa vez. Estávamos cansados disto, era hora de agir.
Entraram os do QG todos, por fim chegou a nossa vez, à medida que íamos
entrando sentavam 10 em cada mesa, eu ocupei a segunda rodada, a primeira mesa,
de forma impulsiva e unânime, levantou-se e começou a bater com os talheres nos
pratos, a minha já não chegou a sentar-se e simultaneamente todas que foram
entrando fizeram o mesmo. Mais de uma centena de soldados do QG já estavam lá
dentro, muitos deles já quase no fim da refeição, lentamente foram-se também
levantando. Decorridos 15 minutos, tinha-se gerado a maior confusão a que
assisti em todo o meu tempo de tropa. A disciplina militar tinha dado lugar a
uma grande anarquia. Em termos Militares tratava-se de uma situação de grande
gravidade. A disciplina militar é rigorosa e inflexível. Havia muitos corações
a bater aceleradamente. Mas ninguém cedeu, nem os do QG.
O Oficial de dia chegou à beira da mesa onde começou o motim, dirigindo-se
a um dos soldados perguntou! Porque é que não comes? Não como porque esta
comida está intragável, respondeu o soldado, o oficial de dia pediu ao
cozinheiro que lhe trouxesse um prato, colocou nesse um pouco de comida e
comeu, voltou a virar-se para o mesmo soldado e ordenou-lhe que comesse porque
a comida estava boa. Ele meteu uma colher de comida na boca e cuspiu-a,
desculpe meu Capitão, mas não consigo comer isto! Estava concluída a prova de
fogo. Senti um certo alívio. Se aquele soldado (Alentejano gordinho de baixa
estatura) tivesse fraquejado, estávamos metidos numa grande alhada.
O Oficial de serviço teve de chamar o Comandante da unidade. Ficamos todos
aguardar: Passaram cerca de 45 minutos, o Comandante apareceu acompanhado de
outra alta patente Militar (coisa que por ali não faltava), fez-se um grande
silêncio. Este subiu para uma cadeira, de maneira educada e em tom moderado,
pediu desculpa pelo acontecimento, prometeu que no futuro a qualidade da comida
ia melhorar. Para que ninguém ficasse sem refeição ia mandar distribuir kits
individuais de rações de combate.
Foi a primeira vez que comi esse tipo de refeição. Passei por um grande
susto, mas valeu a pena, poucos dias se passaram e o nosso novo refeitório
entrava funcionamento. Aqui tudo passou a ser diferente, novo ambiente,
instalações novas, equipamento moderno, funcionamento tipo self-service e refeições
com qualidade.
O aerograma
A necessidade que tinha de receber correio era enorme, funcionava como uma vitamina, a força extra que muito ajudava a ultrapassar as dificuldades, a sua necessidade era comparada com a de comer ou beber.
Quando recebia correio, o dia era mais harmonioso. As notícias demoravam
cinco ou mais dias a chegar, mas era como se o diálogo estivesse a fazer-se
aquele momento.
Numa época em que o telefone só estava ao alcance de uma diminuta
percentagem da população e o telemóvel era pura ficção, restava-me, a via
postal, para comunicar com a família. O aerograma era o mais usado. Tratava-se
de um frágil desdobrável, editado pelo Movimento Nacional Feminino, que nos era
fornecido graciosamente - estava isento de franquia, e era o meio de
comunicação mais usado entre militares e família. Quando havia mais urgência em
comunicar ou pretendia enviar fotos usava a tradicional carta de correio,
pagando o respetivo selo. Era assim que fazia a ligação entre a Guiné e o meu
desejado cantinho na Metrópole.
Agosto de 1973-as coisas
não estavam bem
Sentia-se que as coisas não estavam bem. Em agosto de 1973 houve no
Agrupamento de Transmissões uma reunião onde estiveram presentes cerca de 40
oficiais. A reunião foi secreta, mas não passou despercebida para muitos dos
militares. Muitas outras reuniões se foram sucedendo. Todo este movimento de
descontentamento iniciado em Bissau pelo facto de se prever, que após a
aquisição dos misseis SA-7 Strela pelo parte do PAIGC, os nossos militares
espalhados pelos diversos aquartelamentos da Guiné, ficariam seriamente
desprotegidos e que a guerra estaria perdida, já que a aviação deixou de ter
eficácia que tinha, as consequências que se adivinhavam a partir daqui, uma vez
que o nosso governo já não dispunha de possibilidade nem económica, nem humana,
nem vontade de negociar com as forças que lutavam pela independência, teríamos
por certo a curto prazo uma catástrofe de consequências muito graves, tanto em
vidas humanas como social e económica.
Natal de 1973.
Foi o segundo Natal passado longe da família. Nesta época Natalícia as
saudades acentuam-se mais
24 de dezembro de 1973. Não recebi correio, também não comi bolo-rei, mas o jantar foi ligeiramente melhorado. Serviram batatas cozidas com bacalhau.
O dia de Natal correu
melhor, almocei no AGRTM e de tarde fui com o meu amigo Matias para a cidade.
Já que não tinha havido Pai Natal, fomos comemorar com um jantar numa
marisqueira.
Início de 1974-férias
No início do ano se 1974, fiz mais uma viagem de gozo de féria à metrópole.
Graças ao rendimento no bar de caserna que mantive em funcionamento durante
alguns meses, pude fazer face as despesas da viagem. A viagem à metrópole
ficava à volta de 4.500 pesos (4.500$00). Mais 40 dias de grande felicidade passados
no seio familiar. Estes dias passaram voando, quando dei por mim estava nas
vésperas da partida.
O regresso à Guiné preocupava-me. Eu vivia dias de fortes emoções, faltavam
cerca de 4 meses para me libertar do monstro que se chamava “guerra colonial”,
terminar a missão militar e regressar à vida civil era um sonho que estava à
distância de 120 dias, isto sem dúvida que me alegrava e dava alento para
encarar com otimismo esta etapa final. Mas a situação na Guiné era
terrivelmente preocupante, havia rumores de estar iminente uma invasão a este
território pelas tropas reveldes, com a ajuda de Russos e Cubanos.
Esta incerteza retirava-me a paz de espírito e a tranquilidade. É neste
emaranhado de pensamentos que regresso para a Guiné. Quando cheguei esperavam-me
algumas coisas boas. A primeira foi já existir uma nova equipa em fase de
estágio para fazer a nossa substituição, o que na prática significava ficarmos
com uma disponibilidade de tempo quase total. A outra coisa agradável foi
deixar de fazer serviços no centro Emissor de Antula. Durante as férias o meu
nome havia sido retirado da escala de serviço, quando cheguei fui ter com o meu
amigo da secretaria e pedi-lhe para se esquecer de o voltar a colocar, ele
fez-me a vontade.
Informações secretas
Storno - um dos nossos sistemas de comunicação
Num quartel de transmissões, como o nome indica, chegavam todas as notícias
inerentes ao desenrolar da guerra, das estratégias das nossas tropas, das
posições de avanço ou recuo do inimigo, das conquistas ou derrotas, etc. Embora
as comunicações fossem de carater mais ou menos sigiloso e muitas delas
secretas ou ultrassecretas, transpirava sempre cá para fora alguma coisa. E a
verdade é que tudo parecia indicar que a guerra na Guiné estava perdida.
Parecia que a dúvida era mesmo saber por quanto tempo mais se conseguiria
resistir.
As reuniões de oficiais cada vez já menos secretas confirmavam a insegurança,
a dúvida e o mau estar que se vivia.
13 de março de 1974, dá-se a fracassada revolta das Caldas. Embora não conseguida, foi o sinal inequívoco que o descontentamento com a grave situação que se vivia na Guiné se tinha generalizado a todo o País.
25 de abril 1974
Sabia que algo ia acontecer… o quê? Não tinha a resposta! Por sim pelo não,
no Agrupamento de Transmissões dormiu-se pouco, foram muitos os movidos pela
curiosidade, muitos quiseram passar parte da noite junto dos rádios
sintonizando através da difusão em onda curta as rádios BBC e rádio Moscovo.
A notícia que em Portugal tinha havido um golpe de estado, chegou depois
das 5 horas da manhã, a notícia espalhou-se rapidamente por toda a Unidade
Militar.
Instalou-se a partir daqui um autêntico clima de euforia. O pensamento
geral dos militares era que este acontecimento fizesse com que rapidamente
todos regressassem às suas terras.
Na realidade este acontecimento (de alguma forma esperado por muitos) era
sem dúvida, para quem conhecia o terrível agravamento da situação militar da
Guiné, um suspiro de alívio e um enorme grito de liberdade.
Manifestação 1º maio em Bissau
Os tempos a seguir ao 25 de abril de 1974 foram de alegria e
entusiasmo, mas também de muita agitação e desordem. Em Bissau aconteceram
várias manifestações populares apelando à rápida independência. Havia que fazer
tudo em tempo record. Os nossos dirigentes militares não tinham um plano nem
estavam preparados para tanta agitação. É sem dúvida de elogiar as nossas
forças militares pela forma como conseguiram lidar e encontrar soluções para
todo este “inesperado” processo.
Terminava o meu tempo de comissão” 24 meses” em junho de 1974, mas só a 14 de agosto é que regressei a casa.
Metrópole 1971/1972
Ano de 1968. Aos dezoito anos, por
imposição da lei do Estado, fui chamado ao recenseamento (dar o nome para o
serviço militar). Esta medida era obrigatória para todos os jovens ao completar
essa idade.
Ano de 1970. Com vinte anos fui à inspeção militar, este
exame foi feito no Tribunal da Comarca, integrado nas instalações da Câmara
Municipal de Paredes, onde o ministério da defesa fez deslocar uma equipa de
(inspetores) médicos militares. Foi dado ordem aos mancebos para se despirem e
em fila fomos passando pela equipa de inspetores que um-a-um, depois de um
exame superficial, iam consideravam aptos para todo o serviço militar “todos”
exceto aqueles que apresentassem deficiências físicas ou problemas de saúde
claramente visíveis.
Ingressar no exército e com isso vir provavelmente a participar na guerra
colonial em que o País estava envolvido desde 1961, que eu considerava injusta,
era algo que me repugnava, mas estava conformado, não tinha nenhuma deficiência
física por isso sabia que só um milagre me faria escapar dessa
fatalidade.
Com o intuito de me livrar dessa evidente possibilidade, consultei um
médico de clínica geral e perguntei-lhe se haveria forma de inventar uma doença
para os enganar. Ele mandou-me fazer uma radiografia ao coração e juntou-lhe um
relatório para entregar no centro de inspeções. Este processo fez-me acreditar
que o milagre pudesse mesmo acontecer. No ato da inspeção, entreguei o
relatório e a radiografia e esperei pela decisão. O resultado foi; “apuramento
condicionado” sujeito à apreciação do hospital militar.
Decorrido algum tempo fui notificado para comparecer no Hospital Militar
(HP) para ser submetido a exames médicos.
Depois de várias deslocações ao (HP) e alguns exames feitos nesse hospital
do Porto, foi considerado apto para todo o serviço militar. O milagre porque
suspirava não aconteceu!
A partir daí sabia que aproximadamente três anos da minha juventude seriam
passados na tropa. O menos mau que me podia acontecer era não ser mobilizado
para a guerra colonial.
Portugal estava envolvido na guerra colonial que teve início em 1961
e que o nosso governo teimosamente alimentava. Por esse motivo tinha
necessidade de recrutar tudo e todos para fazer face a essa guerra que se
travava em várias frentes; “Angola, Moçambique, Guiné e Timor”. Nessa altura já
não tínhamos as colónias situadas na India.
No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, o domínio colonial das potências
europeias sobre territórios africanos e asiáticos começou a ser fortemente
posto em causa, tendo-se formado um vasto movimento ideológico e político
tendente a obter a independência daqueles territórios, mas o nosso governo
“Salazar” usou sempre a vertente militar para resolver as questões de soberania
que se lhe colocassem no âmbito colónias.
Enquanto outros países, que também foram colonialistas, cederam à
contestação e foram encetando negociações com os colonos de forma a permitir a
sua autodeterminação, fazendo com que esses gradualmente assumissem a gestão
dos seus territórios, o nosso Governo decidiu prepotentemente através da força
das armas, manter uma guerra sem sentido, sacrificando todo o seu povo,
principalmente os jovens, durante os longos catorze anos de luta.
Ingresso na vida militar – “tropa”
Um dia chegou a notícia – alguém disse; já
afixaram as listas das incorporações! Fui confirmar e lá estava o meu nome;
GACA3 “Quartel Militar em Espinho” era o meu destino!
19 De outubro de 1971. Foi naquela já
longínqua terça-feira de outono, que me apresentei para assentar praça no GACA
3 em Espinho.
Recordo a viagem de comboio desde a estação de Campanhã até Paramos-Espinho;
a angústia, o desconforto, a insegurança e a separação do meu quotidiano.
Lembro-me do arrepio, ao entrar na porta de armas do Quartel, pela incerteza que esse
novo ciclo vida me trazia.
Habituado no habitat da pacata aldeia onde nasci, onde as noticias com
repercussão eram sobre o que se passava à minha volta, num tempo em que ir a
Lisboa, que ficava a pouco mais de trezentos quilómetros era quase uma
aventura, como podia eu sentir-me bem com esta imposição de me integrarem num
exército que me revoltava, porque o principal objetivo era preparar os mancebos
para a guerra colonial.
Foram muitos os jovens que optaram por saírem do País, evitando dessa forma
participar na guerra. Eram
considerados desertores e incorriam num crime de deserção militar, o que
significava que não podiam voltar a Portugal. Nunca considerei essa
possibilidade, tal significava comprometer o futuro e a privação da liberdade,
isso não queria perder.
Quartel militar GACA 3 Espinho.1971
As degradantes condições de alojamento, o péssimo serviço do refeitório, a
rígida disciplina militar e a contrariedade com que enfrentava toda esta
situação, faziam com que me sentisse a viver uma espécie de pesadelo.
Esta formação era um desafio à capacidade física e psicológica.
Cheguei ao GACA3 numa 3ª-feira, 19 de outubro de 1971. Depois de nos terem
formado em grupos e distribuído o uniforme que passaríamos a usar, recebemos
algumas instruções sobre o Regulamento de Disciplina Militar (RDM), que a partir
daí teríamos de cumprir escrupulosamente.
Toda a semana aprendi e executei exercícios militares, as refeições eram
feitas num refeitório onde ficávamos tão
apertados que só era possível ter uma mão em cima da mesa para pegar no garfo
ou na colher, na caserna onde dormia havia umas esponjas nojentas que serviam
de colchão e para que nos tornássemos rapidamente disciplinados, ao segundo dia
de madrugada entrou um oficial “chico” pela caserna dentro gritando em tom
agressivo; Quero toda a gente formados na parada com botas bem engraxadas e
barba bem cortada, tem dez minutos para o fazerem. Gerou-se uma grande correria
e confusão, mas dez minutos decorridos lá estávamos, como tinha sido exigido,
formados na parada. O oficial, cuja patente não me recordo, acompanhado de
outros graduados passou em revista as tropas formadas, depois de ter implicado
com dois ou três praças, porque a barba não estava bem cortada ou porque as
botas não estavam devidamente engraxadas, fez algumas repreensões em tom ríspido
e mandou-nos de novo para a caserna.
Passados os primeiros quatro dias de tropa, que pareceram um mês, chegava
finalmente a ansiada sexta-feira que significava vir a casa de fim-de-semana.
O
desejado fim de semana, quase se transforma num pesadelo.
O tão ambicionado dia de sexta-feira
finalmente chegou. Os olhos brilhavam de alegria, estava a poucas horas de
deixar aquele indesejado local.
Mas estava longe de imaginar o
pesadelo que estava prestes a acontecer. Depois de almoço, o Alferes que comandava
o meu pelotão, mandou-nos formar para dar uma notícia. Num sorriso forçado, em
tão sádico disse: vocês estão cheios de sorte! Vão ter estes dois dias para
conhecer melhor o Quartel! - Ninguém vai a casa de fim de semana - sem mais
comentários deixou-nos estupefactos a olhar uns para os outros.
Nem queria acreditar no que acabava de
ouvir! Não podia ser! Só me faltava mais esta! Pensei… eu que estava ali contrariado,
revoltado, distante de tudo o que gostava, a preparar-me para uma guerra que
repugnava, ia ter de passar o meu primeiro fim-de- semana de tropa naquele
quartel que não me despertava qualquer interesse?
Não…não podia ser – repeti para mim
várias vezes esta frase. Tinha de haver uma saída! Imaginei várias
possibilidades – sair discretamente na Porta de Armas? Era arriscado… depois
tinha de voltar a entrar, e se me apanhavam? O melhor seria pela via legal! Fui
pensando e ao mesmo tempo caminhando, cruzei-me com um graduado, não me lembro
que posto tinha, também ainda mal conhecia as patentes militares, fiz-lhe
continência e perguntei-lhe se me aconselhava o que devia fazer para ir a casa
de fim-de-semana? Ele Respondeu-me; vais ao gabinete do comandante da
Companhia, dizes que precisas de ir a casa e pedes-lhe para te assinar uma
dispensa de fim-de-semana. Em passo apressado caminhei à procura do gabinete do
comandante, depois de perguntar algumas vezes onde ficava esse local, lá me
encontrei finalmente à porta do homem a quem todos obedeciam. A vontade de ir a
casa deu-me coragem para entrar. Bati a pala e da forma mais convincente que
consegui, expliquei os meus motivos para ir de fim-de-semana. Num tom austero
este pediu-me a dispensa par assinar, mas… meu comandante, não sabia que tinha
de trazer o papel? Vai à secretaria buscá-lo e volta cá. Corri à procura da
secretaria, que afinal estava ali mesmo de frente, pedi o impresso e voltei a
correr ao gabinete do comandante - antes que este se arrependesse! Voltei a
repetir a cerimónia de entrada, ele fez um sarrabisco no papel e lá vim em
passo acelerado até à estação do comboio para embarcar a caminho de casa. Fui o
único a ter essa sorte, todos os meus companheiros de pelotão passaram o fim de
semana no Quartel.
22, de outubro de 1971. Segunda-feira logo de manhã, segui rumo a Paramos para dar continuidade às atividades militares. Desta vez não utilizei o comboio, mas sim a minha motorizada. Com a acessibilidade a este meio de transporte, comecei a vir a casa também a meio da semana.
Os três meses de recruta passados no GACA 3 de Espinho tinham o objetivo de
preparar os mancebos para a vida militar. Na primeira fase adquiria-se
conhecimento sobre as regras e disciplina militar, depois preparação física e
por último manejo de armas.
Durante este período de recruta, os instrutores iam analisando as
capacidades de cada um, com
o intuito de posteriormente fazer o encaminhamento para a especialidade mais
adequada.
A grande maioria dos recrutas, seguiam para as especialidades de; atiradores, sapadores, comandos ou condutores. Todas estas, em situação de guerra eram de grande risco e que por isso eu queria a todo o custo evitar. Para conseguir esse objetivo era preciso não ser bom naquilo que se relacionava com essas especialidades, e ao mesmo tempo, mostrar valências e aptidões para o que pretendia alcançar, que era chegar à Escola Militar de Eletromecânica e fazer o curso de eletrónica.
Juramento bandeira, dezembro de 1971
Depois da cerimónia de juramento de bandeira, que se realizou em meados de dezembro de 1971, deram-me quinze dias de férias, findos os quais tinha de me apresentar na EMEL em Paço de Arcos.
Finalmente… duas boas notícias! Quinze dias de férias e a concretização do
acesso à especialidade pretendida.
03 de janeiro de 1972, apresentei-me na
EMEL “Escola Militar de Eletromecânica” situada em Paço de Arcos, fiquei com uma ótima impressão em relação a todo o cenário com que me deparei. As instalações eram muito boas e o ambiente parecia muito agradável, tratava-se na realidade de uma escola no verdadeiro sentido da palavra.
Escola Militar de Electromecânica |
Sempre gostei de estudar, via surgir a oportunidade que não tinha tido na infância. Tinha pela frente aproximadamente seis meses de aulas nas disciplinas de matemática, física/química, eletricidade e eletrónica.
A (EMEL) Escola Militar de Eletromecânica, situava-se junto ao mar no centro da Vila de Paço de Arcos. A disciplina militar quase não se notava, o refeitório estava equipado com uma ótima cozinha, mesa de cinco lugares, a comida era boa, os cozinheiros eram civis, grande liberdade de entrada e saída, um contraste total com a tropa que tinha tido até aqui.
No dia 5 de Janeiro, véspera de Reis, brindaram-nos com um excelente jantar onde em cada mesa de cinco, houve direito a um bolo-rei e uma garrafa de vinho do Porto. Guardo muitas e boas recordações desta Escola Militar.
Seriamos aproximadamente dez turmas, cerca de 250 alunos, a grande maioria com formação académica acima do ensino primário.
Eu fazia parte de um pequeno grupo que apenas tinham a 4ª classe, partia, em relação à maioria, com alguma desvantagem, esforcei-me bastante para alcançar o objetivo.
Ao fim de semana vinha a casa. À sexta-feira era dia de viajar no autocarro que a meio da tarde enchia com os militares do norte do País com destino ao Porto, chegava aí por volta das 22 horas, a tempo de apanhar a camioneta da carreira com destino a Baltar.
A viagem era feita pela estrada N1, não havia autoestrada, o tempo de viagem era de aproximadamente seis horas.
Ao domingo regressava a Paço de Arcos, saía do Porto depois da meia-noite, fazíamos uma paragem na zona de Leiria para comer uma bifana (coisa que nessa época não era conhecido no norte do País) e beber uma cerveja, chegava à EMEL ao amanhecer.
O serviço que tinha a fazer era estudar, tinha aulas de manhã e de tarde, nas horas livres saía do quartel e ia sentar-me à mesa do café a rever a matéria dada nas aulas e reler os livros. Para entender tinha de aproveitar o tempo porque o que tinha aprendido até à quarta classe do ensino primário estava muito aquém do que agora me era exigido.
06 de maio de 1972. Terminei o curso com média de 12.72 valores, podia ter uma média mais alta, o resultado foi positivo, em caso de mobilização dava direito à promoção a 1º cabo, adquiri conhecimento teórico em áreas que me poderiam vir a ser muito úteis no futuro.
Escola Militar de Eletromecânica resultou num elevado e prestigiado número técnicos de eletrónica no Exército e na vida civil.
Este ciclo de vida militar terminava aqui. No dia seguinte, tinha de me apresentar no Regimento de transmissões do Porto
Imagem atual, do antigo quartel de transmissões do Porto.
A ordem de mobilização para guerra no ultramar chegava, para que a notícia tivesse ainda um sabor mais amargo, o destino era a Guiné. Mais uma vez o acelerar do batimento cardíaco se fez sentir. Dos quatro ou cinco militares da minha freguesia a ser chamado para aquele território Africano. Dois não voltaram..."morreram".
Dá para imaginar a minha força anímica! Fazia parte de uma geração a quem foi roubada a inocência e a juventude em nome da guerra!
Fui integrado num Batalhão que se chamava “BART6520/72”, formou-se no RAL5 de Penafiel e que tinha como destino a zona de Tite Guiné.
Tite era uma zona de mato com um rudimentar aquartelamento militar e uma pequena povoação de algumas dezenas de tabancas, onde a vida dos residentes tinha características muito primitivas. Viviam seminus, sem água, sem luz, rodeados de mata, com caminhos em terra e casas “tabancas” feitas de barro, cobertas com capim.
Eu pertencia à companhia CCS “comando e serviços”, que tinha Tite como destino, as restantes seriam colocadas na periferia.
Nesta imagem estão presentes alguns dos meus amigos mais próximos, do meu tempo de comissão militar na Guiné.
Junto à Praça do Império, em frente ao palácio do governador, na época do General António Sepínola.
O local onde passava a noite, dormia a sesta e enquanto acordado ia lendo os livros que conseguia arranjar.
Viviam-se tempos de grande agitação em Bissau no pós 25 de abril de 1974. O 1º de maio vivido em Bissau após a revolução do 25 de abril de 1974. |